domingo, 30 de junho de 2019

Ponte dos Jesuítas



Capítulo sobre a Ponte dos Jesuítas, que está no livro Fragmentos do Rio Antigo, André Luís Mansur Baptista e Ronaldo Morais, páginas 20, 21, 22 e 23. As fotos foram tiradas por Ronaldo Morais em 1984.

A PONTE DOS JESUÍTAS

Construída em 1752, a Ponte dos Jesuítas é um dos mais importantes e bem preservados símbolos da arquitetura colonial do Rio de Janeiro. Também conhecida como Ponte do Guandu, ela não é uma ponte comum, e sim uma ponte-comporta, já que através dos seus arcos era usada para regular a passagem das águas do Rio Guandu, que hoje não passam mais por ali, e também desviá-las para o Rio Itaguaí através de um canal artificial. Com 50 metros de extensão e seis de largura, ela também servia como passagem dos tropeiros que circulavam pelo chamado "sertão carioca", levando mantimentos e outros produtos pelas muitas fazendas da região.

Seu piso é formado por sólidas lajes, no calçamento conhecido como pé de moleque, muito usado em Paraty e o terror dos saltos altos das mulheres. Os quatro arcos, revestidos internamente com pedra, eram chamados de "óculos", e os padres, por meio de comportas de madeira, faziam a regulagem das águas para evitar enchentes que destruíam as plantações, matavam o rebanho e inundavam as casas. Feita de cantaria e construída na administração do padre Pedro Fernandes, grande empreendedor da fazenda, a ponte é ornamentada por oito colunas de granito com capitéis (parte superior de uma coluna ou pilastra) em forma de pinhas portuguesas. Na parte central, entre belas esculturas barrocas, há um bloco em mármore lioz, onde se vê um brasão com o símbolo da Companhia de Jesus (IHS) e a data de 1752, além da seguinte inscrição em latim, com a respectiva tradução:

Flecte genu, tanto sub nomine, flecte viator
Hic etiam reflua flectitur amnis agua

Dobra o joelho sob tão grande nome, viajante
Aqui também se dobra o rio em água refluente

A ponte fez parte do amplo trabalho dos jesuítas de controle das águas, drenagem e irrigação da ampla área da Fazenda de Santa Cruz, repleta de pântanos e terrenos alagadiços em geral, sempre sujeitos a inundações. Dois padres foram mandados para estudar na Holanda, que enfrentava os mesmos problemas, para aprender os procedimentos corretos. Foram feitos mapas hidrográficos por toda a região, e os vales, morros e elevações em geral, foram estudados. Os jesuítas concluíram que os leitos dos rios deveriam ser contidos nos pontos de inundação, com as pontes-comportas, aberturas de valas e canais para o escoamento das águas, solucionando o problema de enchentes e secas e tornando a Fazenda de Santa Cruz uma das mais produtivas do Brasil.

Com a canalização do Guandu, cujas águas abastecem a população da cidade, a ponte perdeu sua função original, mantendo, no entanto, a importância histórica e arquitetônica, tanto que seu tombamento foi um dos primeiros do país, em 1938, quando o governo de Getúlio Vargas criou a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje o mais importante Instituto de Preservação do Patrimônio, mais conhecido como Iphan. Infelizmente, a ponte sofreu degradação de pessoas que quiseram tirar partes de sua estrutura para algum tipo de obra, inclusive com a derrubada de duas colunas, mas os constantes trabalhos de recuperação e a conscientização da população local estão dando a este importante monumento da cidade o seu real valor. A Ponte dos Jesuítas fica na Estrada do Curtume, em Santa Cruz, ao lado da Ponte Lindolfo Collor .

Texto de André Luís Mansur Baptista
Fotos de Ronaldo de Morais

Editado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Uma pequena homenagem aos visitantes no plantão de hoje


Hoje em nosso plantão no NOPH recebemos a visita do escritor e amigo André Mansur, que elogiou a atuação da nova coordenação pela ativa publicação dos eventos em rede. 

André Mansur visitou a exposição Revisitando os Campos de Concentração ficando bastante impressionado com o realismo da mesma.

Na oportunidade deixou a seguinte mensagem na árvore da esperança: O ódio é uma das doenças da história. Ao final enviou parabéns a todos e todas prometendo retornar mais vezes.
 






















Outro registro de grande importância no plantão de hoje foi a visita do nosso coordenador professor José Renato que visitou com seus alunos a exposição e também todo o prédio do Palacete Princesa Isabel.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

O dia a dia dos escravos na antiga Fazenda de Santa Cruz

Carlos Engemman

Imagem 1: Vista do Castelo Imperial de Santa Cruz, J. B. Debret (1816-1820)
Nenhum dos viajantes que se hospedou na Fazenda de Santa Cruz deixou um relato que nos contasse como os escravos se ajeitavam nos seus afazeres diários. Mesmo assim, as várias fontes consultadas acabaram nos dando uma ideia, ainda que com as distorções costumeiras, do possível cotidiano destes homens e mulheres unidos pelos seus laços sociais e pelas correntes do cativeiro. 

Talvez um viajante que visitasse Santa Cruz preocupado em retratar a vida dos escravos visse algumas coisas interessantes, as quais bem poderíamos ler em algum relato perdido. Ainda que nos parecesse um tanto exagerado, como exagerados pareceram alguns elementos das fontes que ainda assim mencionaremos a seguir, o exagero não seria inocente, quem sabe fosse a expressão do pasmo ou até da confusão do autor frente ao que via, mas não entendia. Quiçá fosse alguém que estivesse apenas de passagem, para um pouso numa jornada maior.

Um tal viajante hipotético certamente se encantaria com o cenário que se descortinaria diante de seus olhos após a curva do alto do Morro dos Chinas. Morro que recebeu esse nome pela presença, desde o início do século XIX, de uma colônia de chineses, usados como experiência do uso de mão-de-obra oriental na substituição dos cativos. 


Ao iniciar a descida, o imaginário viajante se depararia com uma enorme baixada, compondo um vasto campo limitado ao longe por um par de montanhas. Boa parte destas terras era destinada ao pasto dos diversos gados, mas em vários pontos dessa paisagem seria possível ver cercados de terra com algum cultivo. 

Se fosse um dia santificado, como o domingo ou outra data com preceito de guarda pela fé católica, os escravos estariam trabalhando nestes cercados, cuja posse lhe fora concedida.

No meio da baixada, o maior sinal da presença humana, um pequeno povoado, organizado à moda dos antigos aldeamentos jesuítas. Ao fundo, dominando todo o cenário, ladeada pela torre do campanário, a imponente igreja dotada de uma maciça porta central com três vitrais equidistantes por sobre ela, conforme o sólido estilo arquitetônico jesuítico. Ao seu lado o que já fora o convento dos jesuítas, agora, desde 1808, transformado em palácio, residência de verão para a Família Real. À frente deste conjunto, dois bairros de senzalas emoldurando o terreiro central. À direita, o bairro de Pacotiba e a esquerda o bairro Limeira. Do alto da serra, certamente poderia ser ouvido o murmúrio, ainda que distante, do borbulhar da vida na fazenda.

Ao descer pela estrada sinuosa, o viajante começaria, paulatinamente, a distinguir os sons que de lá emanavam. Ao fundo o murmúrio constante dos canais de drenagem dos pastos, construídos sob a égide de Santo Inácio e mantidos abertos pelos mais zelosos dos seus administradores. Sobrepondo-se a esse, provavelmente seria ouvido o conjunto de vozes, algo indefinido, da escravaria da fazenda. Algumas vozes femininas, em cantorias a embalar o seu serviço, outras infantis, na festiva comemoração da vida, típica da tenra idade.

Imagem 2: Foto Escravos trabalhando na Fazenda Quititi, no Rio de Janeiro, 1865 (Georges Leuzinger/Acervo Instituto Moreira Salles). 
Aproximando-se pelo terreiro, o coche de nosso possível viajante se tornaria alvo de olhares, um tanto curiosos, mas já habituados ao movimento de chegada frequente de visitantes. Quiçá a indagação fosse apenas: quem será dessa vez? Ou algo assim. Se fosse numa tarde de sexta-feira, haveria um grande número de cativos por lá, evitando o trabalho da fazenda e preparando-se para outras atividades, como o trabalho na sua própria exploração agrícola ou a folga do fim de semana. Se fosse uma segunda-feira pela manhã, igualmente estariam lá os tantos cativos, relutando às imprecações dos feitores, que os empurravam para o trabalho. Suponhamos que se tratava de uma sexta-feira, digamos, pela manhã.

Certamente os responsáveis pela administração estariam de prontidão a receber o novo hóspede, trocar alguma conversa e conduzi-lo para o almoço. À tarde, após um bom descanso, numa espécie de passeio guiado pelos arredores imediatos do Palácio, estarrecido, o ilustre visitante constataria que a fazenda estava dotada de grande autonomia. Ao passar pelas oficinas poderia ver os vários mestres - carpinteiros, ferreiros, falquejadores - e seus aprendizes encerrando morosamente suas atividades. 

Assim também, poderia conhecer os teares, local de trabalho de aproximadamente 40 mulheres coordenadas por um mestre tecelão, onde eram produzidos os tecidos que vestiam a escravaria de Santa Cruz nos seus mais corriqueiros dias. A botica causaria estranheza ao hipotético estrangeiro, já que ela também era controlada por um escravo que, até por força do ofício, era alfabetizado, lendo e escrevendo com precária desenvoltura, mas ainda assim, fazendo-o.

E este não era um apanágio do boticário de Santa Cruz, lá havia uma escola de rudimentos para os meninos que lá aprendiam as primeiras letras até os sete anos, período no qual eram também alimentados pela cozinha das crianças. Provavelmente, o abrigo fornecido pela fazenda aos infantes menores de sete anos constituía-se num meio para liberar as suas mães, que em certas épocas compunham a maior parte das esquadras móveis, responsáveis pelos trabalhos da fazenda.

Talvez este desequilíbrio sexual fosse percebido pelo nosso hipotético observador. Podemos imaginá-lo comparando a paisagem humana desta fazenda com as demais observadas ao longo de visitas em outras propriedades. Suas retinas, habituadas ao predomínio masculino na população escrava poderiam estranhar a frequência feminina neste grupo. Provavelmente suporia estar em um criadouro de escravos, como alguns néscios ainda hoje o fazem. Arriscado seria supor a resposta do administrador, caso fosse indagado sobre o destino dos homens do lugar. Corramos o risco de vislumbrá
-lo chutando um pouco de poeira do chão, com as mãos no bolso e levantando o rosto a comentar sobre a ida de homens a reparar o aqueduto da Lapa ou para obras no Rio de Janeiro, talvez alguns tenham obtido a sua liberdade e outros tenham fugido, mas no geral estão eles trabalhando em outras obras de El Rey de Portugal, afinal são escravos do rei.

Se o estrangeiro ousasse vagar entre as casas da vila dos escravos, é possível que se deparasse com algumas construções de parede sólida com várias portas, tantas quantas eram as moradias obtidas de sua subdivisão. A julgar pelo que captou Debret, essas construções eram providas de janelas, algo que talvez diferisse de outras possíveis observações anteriores. Quanto a seus habitantes, a esses podemos imaginar que as impressões não seriam muito diferentes das que já nos foram dadas, tanto pelo escrivão dos autos do sequestro dos bens, por ocasião da expulsão dos jesuítas, quanto pelo deputado Rafael de Carvalho, quase 100 anos depois: os acharia “uma gente muito preta e muito feia”.

Imagem 3: Negra com o filho, Salvador, em 1884 (Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Mas a tarde já declina, aproxima-se a hora da Ave-Maria, e mesmo que fosse de um país protestante, ao menos pela curiosidade, podemos tomar o nosso hipotético visitante e conduzi-lo até a igreja para os ofícios religiosos que ali teriam lugar. 

Às seis da tarde, aproximadamente, tem início a oração do "Angelus". Hoje - imaginemos - ainda mais solene por ser o Tríduo da festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira de uma das três irmandades dos cativos, a saber: a do Rosário, a das Almas e a do Santíssimo Sacramento.

Os confrades do Rosário entrariam pomposamente pela nave repleta dos negros de Santa Cruz, obviamente todos bem vestidos e paramentados. Os reis da irmandade se dirigiriam para o fundo onde se sentariam nas cadeiras que ladeavam o altar. Viriam, logo a seguir, outros membros eminentes que tomariam lugar na nave principal, próximos à grade que a separava do altar. Certamente estes lugares já estariam separados nesta ocasião. Por último viria o sacerdote que, vendo as duas filas de escravos que seguiam paralelas a sua frente se separarem, chegaria ao altar. Após cumprimentá-lo se dirigiria à congregação, quem sabe até repleta. 

Seria ingenuidade supor que todos os presentes estivessem ensimesmados em orações fervorosas. Boa parte dos fieis estaria, certamente, comentando os detalhes das vestes das rainhas ou, talvez, calculando quanto gastariam para a próxima festividade. Outro grupo possivelmente estaria comentando sobre negócios, algumas compras e vendas poderiam ter lugar no eco do "Dominus te cum" proferido pelo sacerdote e seguido pelos murmúrios dos seus negros fiéis.

Ao final de tudo, a festa prosseguiria na vila dos escravos mas isso não era para os estrangeiros olhos de nosso suposto viajante. Para ele um jantar, um tanto enfadonho, onde o principal assunto à baila talvez fosse as virtudes econômicas e o potencial produtivo da fazenda. Conversa esta que se estenderia ainda pela roda de licores, entretenimento um tanto moroso até a hora de retirar-se. 

Ao recolher-se, o imaginário estrangeiro certamente ainda ouviria os cantos e as celebrações dos cativos diante de suas casas, cantando e dançando aproveitando a sua cota de diversão, numa vida não de todo carente de dores e infortúnio. Ali, no íntimo do seu aposento, ele teria a oportunidade e a privacidade necessária para por seu diário de viagem em dia, anotando as impressões tomadas durante o dia. Quiçá a altas horas da noite, entre o sono e a vigília, ainda fosse embalado nos cantos da tal gente, que ele julgava "preta e feia", de Santa Cruz. 

O sábado começa cedo. Neste dia o trabalho era realizado para os próprios cativos, em suas terras, com seus rebanhos e nas mais atividades que pudessem lhe render algum lucro. Isso posto, podemos imaginar que havia alguma circulação monetária entre os negros e, provavelmente, algum acúmulo pecuniário.  

Ainda pela manhã, de acordo com o interesse de nosso hipotético visitante, ele poderia tomar conhecimento de que algumas escravas foram para a Corte. Seria uma fuga? Não, lhe tranquilizaria um dos funcionários, as fugas ocorriam, mas eram chamadas de deserções e só eram assim consideradas após seis meses de ausência do dito escravo. Então, afinal, que negócios poderiam ter as negras de Santa Cruz na Corte? Foram buscar seus vestidos, mandados fazer nas lojas da rua da Alfândega, com as francesas que costuram para a alta sociedade. Amanhã seria o ponto alto da festa da Senhora do Rosário, uma grande oportunidade para a visibilidade social. 

O que poderia chocar o nosso hipotético observador seria o putativo desperdício de dinheiro, de recursos. Muito mais para um povo cativo, maior proveito - talvez fosse esse o juízo a ser feito - teriam se acumulassem até a última dracma para a alforria e, posteriormente, para algo lhes proporcionasse uma prosperidade material segura, algum investimento. Nota-se que, se existisse, tal viajante seria um ignorante no que tange a alma luso-brasileira.


Imagem 4: Escravos na colheita do café, Rio de Janeiro, 1882 (Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

A parte da tarde do sábado poderia reservar pelo menos uma surpresa para um provável forasteiro. Em meio ao agito da vida vespertina, entre trabalhos próprios, possíveis negócios e preparativos para as festividades próximas, um som se destacaria. Uma buzina rasgaria o burburinho da tarde. E percorrendo as ruas e vielas da vila dos escravos, munido de um carrinho, um peixeiro. Isso porque alguns escravos iam a Sepetiba ou a Guaratiba pela manhã, compravam peixes e depois circulava por entre as ruas da cidadela dos cativos a anunciar o seu produto com a dita buzina. Certamente o regateio se fazia presente a cada requisição de sua presença e ao final de alguns minutos de negociação acertava-se o valor a ser pago pela quantidade desejada.
Novamente às seis da tarde repetia-se o ritual da véspera com a mesma pompa. E depois o mesmo enfado dos jantares, quase intermináveis, onde se alongavam e repetiam os termos da prosperidade da Real Fazenda de Santa Cruz, em grande parte atribuídos ao empenho e competência daquele que as narrava. 

Uma vez livre do ritual dos licores, nosso viajante hipotético poderia se entregar às suas anotações, onde certamente figurariam o complexo sistema de parentesco desenvolvido pelos escravos. Também seria alvo dessas observações o zelo com que estes cuidavam de suas terras e de suas casas, a ponto de disputarem entre si por fronteiras de roças. Nestas situações o administrador funcionaria como árbitro dos litígios.
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Com o alvorecer do domingo, anunciado pelas longas batidas dos pesados sinos do campanário, teria início a solene festa de Nossa Senhora do Rosário. Ao chegar na praça entre as  senzalas, o nosso fictício estrangeiro provavelmente já se depararia com uma pequena multidão. Um grande alvoroço precederia as pouco frutíferas tentativas dos mais velhos em por ordem na procissão que atravessaria toda a extensão do terreno central, entrando na igreja com seus estandartes e paramentos. Ao meio, toda ornada com flores, a estátua de Nossa Senhora do Rosário, uma bela peça de madeira pertencente aos próprios escravos. 

À entrada da nave principal, uma benção especial para os cativos da Irmandade que conduziriam boa parte do transcorrer litúrgico, entoando desde o  Kirie Eleison inicial até as prolixas ladainhas ao final da celebração.
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A festa que se seguiria traria uma rara oportunidade para que o estrangeiro se aproximasse um pouco mais dos cativos e, quiçá tivesse a oportunidade de conversar com um ou outro. Das muitas coisas que, digamos, Mathias Xavier, um escravo nascido em 1741, poderia contar-lhe, uma certamente viria à memória do velho escravo. Foi antes da Família Real chegar, mas bem depois dos padres serem mandados embora, e sabia disso porque ainda era menino quando os padres se foram. Talvez já se fossem passados uns 20 anos do acontecido. Isso mesmo. Foi um ano depois de um companheiro seu ser assassinado com uma facada certeira no coração por um “escravo mau”. O motivo do crime não se lembrava bem, mas deveria ser ou mulher, ou dinheiro, ou terras. Três coisas que levam um homem a perdição.


Imagem 5: Quitandeiras em rua do Rio de Janeiro, 1875 (Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

O fato é que vieram para Santa Cruz dois escravos fugidos do Rio de Janeiro. Ao que se lembra Mathias, um dos ditos escravos havia roubado uma grande quantidade de ouro de seu senhor. Este deveria ser ourives, já que algumas peças vieram soltas, como fivelas e botões. Mathias talvez lembrasse de ter visto uma fivela ou alguns botões desligados de seus usos normais. Pois bem, os dois vieram do Rio de Janeiro e se instalaram nas proximidades, comprando o abrigo e a comida com o ouro roubado. Após muita confusão, o administrador chamou alguns escravos mais velhos, dizendo que já sabia do acontecido, visto que chegaram cartas da cidade e que o melhor a fazer era entregar os dois sujeitos para não macular a reputação dos escravos da fazenda. É claro que outras ameaças também devem ter sido usadas. Talvez a mais temível, o degredo. Caso os ladrões não fossem entregues é provável que diligências acontecessem e os envolvidos seriam vendidos, pelo melhor preço, para algum serviço indesejável, como a produção de cal no Continente do Rio Grande de São Pedro, onde foi localizado um cativo sendo oferecido ao quem pagasse melhor.
Antes de partir, talvez o hipotético viajante tivesse algumas ideias interessantes a respeito dos escravos e da vida na Fazenda de Santa Cruz. Se fosse perspicaz, já teria avaliado que a vida do lugar se constituía em função de uma memória: a memória dos jesuítas. Porém, como toda memória, esta era um bem simbólico a ser negociado pelos diversos agentes sociais deste microcosmo. Para os que queriam desmembrar e vender a propriedade, essa era a memória do inatingível, que torna inviável a retomada das atividades lucrativas. Para os administradores como o Coronel Manuel Martins do Couto Reis, era a memória do almejado, daquilo deveria ser implementado o quanto antes. Para os escravos era a memória de um tratamento bem negociado. 

Para estes últimos, o valor da marca jesuítica era muito mais eficaz quando acreditado pelos seus senhores. É possível que a manutenção de certos comportamentos tenha ocorrido, dentre outros fatores, pelo ganho que a imagem de "povo jesuítico" poderia produzir.

Assim, a identidade de “servos de Santo Inácio a serviço do Imperador” lhes facultava um relacionamento permeado pela memória que os administradores construíram acerca do “modo jesuíta de produção”. Ser devoto, ser fiel a algumas tradições jesuíticas era, então, manter abrasada a crença dos seus feitores na eficácia do método pretensamente herdado dos jesuítas. Acontece que para os cativos o novo relacionamento deveria ser muito mais proveitoso do que com os “veneráveis” antigos senhores de Santo Inácio. 

Cabe perguntar: como os cativos pareciam - aos olhos dos agentes reais e imperiais - tão saudosos e fieis à memória dos tempos da Cia. de Jesus? Esse comportamento possivelmente foi forjado no lidar com os administradores, crentes no poder do método jesuítico. Na medida em que a evocação dessa memória era capaz de amortecer parte dos conflitos inerentes à vida na fazenda, ela foi se plastificando numa identidade relativamente sólida, que distinguia os “Servos de Santo Inácio” dos demais escravos, passíveis de punições mais rígidas e a quem se concedia poucos privilégios. Escravos que eram mais rebeldes, ainda que os de Santa Cruz fossem, ao que tudo indica, apenas imaginariamente mais dóceis.

Imagem 6: Lavagem do ouro, Minas Gerais, 1880 (Foto: Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Assim também seria possível perceber que a tensão estabelecida entre a escravaria e os jesuítas provavelmente foi amortecida pela concessão de benesse aos cativos. Mas, ainda assim, a tensão existia, quiçá sob a sombra do degredo. Ser vendido, retirado de uma propriedade onde a vida era menos sofrida que nos casos mais gerais, não seria punição das menores. Além do que, dentre os edifícios que circundavam o convento, havia uma cadeia, cumprindo seu papel repressor. 
Com o advento da administração real, o descontrole e o desmando parecem ter grassado nos campos da fazenda. Descontrole este, que pode ter gerado uma paulatina autonomia para a vida escrava, não obstante os deslocamentos que retiraram uma parte da mão-de-obra da fazenda.

Algum tempo depois, chegou à fazenda o Coronel Manuel Martins do Couto Reis, um administrador que apostou na viabilidade do modelo jesuíta de administração.    Segundo suas próprias memórias sobre a fazenda, o coronel usou alguns elementos herdados dos jesuítas para a lida com os escravos, embora a pregação e a doutrina religiosa desde os primeiros anos de vida, não fizessem parte deste trato. Esse quinhão do legado inaciano pode ter dado ao coronel o relativo controle que desejava
- relativo até pelas dimensões do plantel. Porém aos cativos, a ausência desta pregação facultou uma maior independência moral frente à fé católica.

Possivelmente, após alguns anos corridos desde a expulsão dos inacianos, os cativos forjaram uma vida cultural cada vez menos permeada pelos hábitos instaurado pelos padres. O controle real era para o labor, pouco interessado numa eventual moralidade dos negros, até por não acreditar que esta fosse possível. Como vimos anteriormente, mesmo os homens mais ilustrados da Corte não distinguiam a vida escrava dos vícios e instintos que maculavam a nação pueril.

De tal modo as  coisas  correriam  que  ao  se  despedir  do  lugar,  o  nosso hipotético estrangeiro sairia  com a sensação de estar abandonando uma comunidade em transformação que se distanciava do padrão moral rígido e supervisionado de perto pelos padres, e adotava um outro diferente, moldado  por escolhas e experiências vivenciadas dentro da própria comunidade, instrumentalizando a memória de uma herança jesuítica. 


O fato de Santa Cruz ser uma fazenda do Estado, a partir de meados do século XVIII, pôs diante dos seus escravos um certo quadro ao qual eles souberam se adaptar com relativa presteza. Apesar das vozes destoantes, como a que vimos em José Bonifácio, a omissão por parte do Estado foi regra no trato com a questão da escravidão. 

Diante de tal ausência, os escritos dos padres jesuítas se transformaram na principal fonte de reflexões sobre a manutenção e o trato com a escravidão. Em terras de abolicionismo tardio, os principais agentes da reflexão e da tentativa de normatização, ainda que por vias morais, eram os padres da Companhia de Jesus.

Santa Cruz teve de ambos um pouco, dos padres primeiro, do Estado depois. Seu microcosmo surge como reflexo do pensamento escravista brasileiro, onde o Estado parece estar à sombra do que diz o clero. Os senhores laicos, dotados de relativa  autonomia perante seus cativos agiam segundo sua própria prática, assim como também deriva dos “costumes” as decisões judiciais. 


Diante deste cenário aparentemente caótico, a escravidão no Brasil se mantém muito mais pelos maleáveis “costumes” do que por qualquer rígido artifício legal. Na fazenda “os costumes”, estabelecidos desde os tempos dos padres, também se transformaram em jurisprudência; direito adquirido e respeitado. Destarte, o regime estatal se mira no eclesiástico tanto pelo sucesso deste quanto pela inépcia daquele no trato com a questão. 

Em função disso, os cativos aproveitavam as heranças dos padres para se impor aos administradores claudicantes. Os maiores aliados que possuíam eram o seu número, assombroso, e a sua fama, tranquilizadora, ambos associados à manutenção do que havia sido estipulado “no tempo dos padres”. 

Só que muita coisa que foi acrescida ou transformada acabou se consolidando politicamente como sido estabelecido “no tempo dos padres”. De tal modo, que o "tempo dos padres” foi dilatado o quanto se pôde. 

Internamente à escravaria, dadas as condições, os relacionamentos foram se tornando cada vez mais complexos, forjando conflitos, alianças, irmandades, fujões, afortunados, enfim toda a diversidade que vimos ao longo deste trabalho. No entanto, os artifícios que utilizavam não eram de todo estranhos aos demais escravos, embora o seu uso fosse, sem dúvida, mais amplo. 


Imagem 7: Escravos na colheita de café, Vale do Paraíba, 1882 (Marc Ferrez/Colección Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Ao escrever sobre as famílias de Santa Cruz, Richard Graham afirmava: “Pode-se presumir, pelo que se conhece da vida escrava em geral, que muitos destes casais representavam somente uniões temporárias”.
Com isso, revelou não apenas quão pouco se conhecia da vida escrava naqueles anos, mas como essa perspectiva embotou sua análise. Mesmo diante de um número considerável de viúvos – e a viuvez é, por definição, espelho de uma relação que sobreviveu à morte de um dos cônjuges, que literalmente transcende a própria existência de uma das partes - Graham preferiu acreditar que as relações eram instáveis e voláteis, sem nenhum significado maior.

Diante de tudo o que pudemos ver, percebe-se o quão amplo era esse significado e como ele açambarcava todos os habitantes da “vila dos escravos”.

Sobre o autor: 


Carlos Engemman (in memorian) era Graduado, Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Professor Titular do Instituto Superior de Teologia do Rio de Janeiro e Professor Pesquisador da Universidade Salgado de Oliveira. Tinha experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos seguintes temas: escravidão, sociabilidade escrava, práticas sociais, escravos do clero e catequese colonial.

Fonte do Texto: Dissertação de Mestrado em História de Carlos Engemman, pp. 121-124. Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp000118.pdf 
Acesso em 30/05/2019 (adaptado).
10 raras fotos de escravos brasileiros. Disponível em: 
Acesso em 30 de maio de 2019.